Houve uma revolução terapêutica que agitou a Oftalmologia mundial e que deu os primeiros passos em Coimbra. Quase ninguém deu conta. De dezembro de 2005 até hoje, o destino fatal de algumas doenças foi transformado em patologia tratável. Foi o dia em que a química entrou dentro dos olhos para curar. Em alguns casos clínicos, bastam 0,05 ml de anti-VEGF
Começamos com uma declaração de princípios: em medicina não há milagres. Há ciência para o bem e para o mal. Admitimos que será sempre para o bem, pelo menos é isso que se promete quando se subscreve o juramento de Hipócrates. Na Oftalmologia, a cura e o milagre roçam limites e não é difícil atribuir dotes sobrenaturais a um médico, tão só porque tratou seguindo a legis artis.
Deixemos os deuses ocultos no espaço deles e optemos pelas questões terrenas. E é disto mesmo que se trata quando falamos que, nos últimos anos, a Oftalmologia teve a possibilidade de se revelar como a especialidade que conseguiu mudar destinos fatais. Isso mesmo, evitar a cegueira. Os anti-VEGF’s têm essa capacidade, mas nem sempre nem nunca.
Falamos de bevacizumab, ranibizumab e alibercept, bem sei que não são conhecidos por estes nomes, mas esta é a designação do princípio ativo, que optamos por usar. No início, existia apenas um, o bevacizumab, um fármaco usado e aprovado para o tratamento do cancro e que acabou por ser utilizado em Oftalmologia como off-label. Primeiro nos Estados Unidos da América e em adultos e, logo de seguida em Portugal, em Coimbra, por António Travassos.
O dia 17 de Dezembro de 2005 é a data que marca o início da revolução da Oftalmologia em Coimbra e, na véspera de Natal, desse mesmo ano, essa mesma solução foi aplicada – pela primeira vez no mundo – num bebé prematuro. A dose aplicada, 0,03 mililitros debevacizumab veio dar certezas às dúvidas que pudessem existir. A solução apresentada pelo oftalmologista António Travassos veio contornar o problema de visão dos prematuros e, durante algum tempo, alguns hospitais enviavam esses bebés para as mãos do oftalmologista de Coimbra.
No primeiro caso, um adulto português, «o doente estava com uma retinopatia diabética proliferativa e no segundo caso, uma criança prematura tinha um problema vascular. Não existia uma solução para estes casos e eu queria resolver os problemas. Acreditei que era possível e resolvi. Claro que tinha consciência que estava a usar um fármaco off-label, mas eu não tinha mais nenhuma solução e sabia que nos Estados Unidos os efeitos foram surpreendentes em doentes adultos.»
A revolução terapêutica tinha começado e Coimbra tinha uma fatia nesta história que não se conta, porque poucos deram conta. Foi preciso esperar uns anos para perceber o potencial dos anti-VEGF’s e para dissipar as dúvidas que persistiam na mente dos Velhos do Restelo. Os pares desconfiavam, «não compreendiam e achavam que eu estava apenas a provocar. Renderam-se quando apresentei os resultados», recorda o oftalmologista António Travassos.
Um mês depois da primeira aplicação e ciente das consequências e das mudanças que se adivinhavam, o mesmo médico afirmou numa reunião científica que «estava aberta uma nova janela para a Oftalmologia». Assim foi, apesar de, com o tempo, percebermos que a “janela” se transformou numa “porta”, por vezes demasiado escancarada.
Aquilo que hoje se designa por injeções intra-vítreo começou assim, com desconfiança e sem certezas e com um medicamento off-label, ou seja, um fármaco com uma indicação terapêutica diferente daquela para o qual foi aprovado. A sua utilização para outros fins não viola nenhuma lei nacional ou internacional mas é um ato de absoluta responsabilidade do médico que prescreve este medicamento.
A medicina baseada na evidência estava a dar os primeiros passos e, rapidamente, se constatou que a bevacizumab era uma alternativa em eficácia e na relação custo/benefício. A validação científica tornou-se evidente. A fileira tinha sido aberta. Os congéneres ranibizumab e alibercept passaram a ser usados regularmente. Com pelo menos uma diferença: o preço (20 a 40 vezes mais).
Até onde vai a atuação dos anti-vegf’s
De comum, têm o facto de promoverem uma desorganização dos neovasos sanguíneos da retina e é isto que dita a fatalidade da doença, que culmina, em alguns casos em cegueira ou perda de visão que pode ser irreversível. Os anti-VEGF’s mudaram o rumo destas histórias.
Voltamos ao trio: bevacizumab, ranibizumab e alibercept, os anti-VEGF’s ou anti-angiogénicos que estão a ser utilizados para tratar doenças como degenerescência da mácula, neovascularização retiniana no diabético, edema macular, inflamação ocular e prematuridade. Tudo casos que, há 20/15 anos, iriam culminar em cegueira ou que, nem seriam diagnosticados, porque a evolução tecnológica acabou por enriquecer os exames de diagnóstico em Oftalmologia.
Mas, perante a certeza do diagnóstico e a fatalidade da doença, não existia ama solução terapêutica viável. Isto é, a criança que nascia prematura tinha grande possibilidade de ser um adulto cego, tal como o diabético que desenvolvesse uma complicação poderia cegar em breve. Hoje poderá não ser assim, se a resposta for utilizada no momento certo e se o organismo reagir como esperado, a fatalidade é transformada em patologia tratável.
O VEGF, o fator que promove o crescimento dos vasos, tem uma oposição com o anti-
VEGF, um agente inibidor ou um fármaco que tem sido utilizado para evitar o crescimento desses novos vasos sanguíneos desorganizados e anómalos, que afetam a visão. É precisamente isso que acontece, por exemplo, na forma húmida de Degenerescência Macular da Idade (DMI), um crescimento anómalo de vasos sanguíneos, que pode levar à destruição da mácula, a área da retina responsável pela visão central.
O mesmo se passa com o edema macular do diabético, uma consequência da diabetes que atinge os vasos sanguíneos, que se tornam permeáveis. Em simultâneo, o crescimento anómalo de vasos sanguíneos vai enfraquecer todas as junções e células das paredes desses mesmos vasos, comprometendo a visão.
Na prática e em pouco mais de 10 anos, a utilização de injeções intraoculares assiste a um crescimento sem precedentes, apesar de esta não ser a varinha de condão que chegou para remediar todos os males da visão. Admitimos que a solução pode ser sedutora e que o doente é tentado a querer experimentar. Mas, nem sempre, nem nunca.
Conceição Abreu